Versões de mim
(Luiz Fernando Veríssimo)
Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido.
Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número
(unzinho e eu ganhava a sena acumulada),
topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes,chegado
depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice , feito
aquele teste...
Agora mesmo, neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz
- aliás, o nome do bar é Imaginário -,
sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:
- Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo.
E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.
- Por que? Sua vida não foi melhor do que a minha?
- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção.Fiz um
grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia...
- Eu sei, eu sei... - disse alguém sentado ao lado dele.Olhamos para o intrometido...
Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que
nós. Ele continuou:
- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o
único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol
e foi ser um medíocre propagandista.
- Como é que você sabe?- Eu sou você, se tivesse saído do gol.
Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição
que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo.
No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não
me atirar. Como era um herói, me atirei... Levei um chute na cabeça. Não pude
ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto:
bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante...
- Ele chutaria para fora.Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado
dele, que em seguida se apresentou:
- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença. Não seria gol.
Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e com fama de sortudo também.
Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula.
O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa.
Embarquei com festa no Rio...
- E o que aconteceu? - perguntamos os três em uníssono.
- Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?
- Você...- Morri com 28 anos.- Bem que tínhamos notado sua palidez.
- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo...
- E ter levado o chute na cabeça...- Foi melhor - continuei
- ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado...
- Você deve estar brincando! - disse alguém sentado a
minha esquerda.Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.
- Quem é você?- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço
público.Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas
por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra.
As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas,pequenas traições,
promoções negadas e frustração.Olhei em volta. Eu lotava o bar.
Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente.
Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali,era eu mesmo.
O barman fez que sim com a cabeça, tristemente.
Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.
- Quem é você? - perguntei.
- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.- E...?Ele não respondeu.
Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo...
Creio que a vida não é feita das decisões
que você não toma, ou das atitudes que você não teve, mas sim, daquilo que foi
feito. Se bom ou não, penso, é melhor viver do futuro que do passado.