As neves do
Kilimanjaro (Les
neiges du Kilimandjaro )
Diretor: Robert
Guédiguian
Elenco: Ariane Ascaride,
Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan
França (2011)
Eis
aqui um filme que chega como quem não quer nada e, pouco a pouco, vai invadindo
o coração... Um filme para falar à geração dos militantes políticos ( mais
propriamente dos militantes sindicais e da geração de 68) engajados em um mundo
em que a utopia transformadora foi sendo engolida pela globalização. Um filme
belíssimo, para fazer pensar. E talvez também repensar a vida e os projetos do
futuro. Não se surpreendam se lágrimas furtivas rolarem pelos rostos dos mais
sensíveis.
Marie-Claire e
Michel formam um casal de um outro mundo. Apesar de viverem em Marselha no
século XXI, seus valores podem soar tão retrô quanto a máquina de escrever, o
telefone fixo ou histórias de amor com finais felizes “para sempre”.
Idealistas e generosos,
sobrevivem às margens do individualismo desenfreado e da velocidade dos tempos
que correm via internet. Ele é militante sindical e, apesar da imunidade do
cargo, sorteia o próprio nome de uma lista de demissões, aumentando assim a
legião de desempregados da crise europeia. A mulher ajuda nas despesas como
acompanhante de idosos. Sábia e solidária, parece preparada para o futuro: “Em
casa, nenhum homem é herói”, conforma-se, enquanto tenta animar o entediado
marido precocemente aposentado.
“Les neiges du
Kilimandjaro” (no original) não é um remake da superprodução de 1952, com
direção de Victor King, baseada em novela de Ernest Hemingway, estrelada por
Gregory Peck e Ava Gardner. A inspiração, no caso, retrocede ao poema “Les
pauvres gens”, de Victor Hugo (1802-1885), gatilho para o diretor Robert
Guédiguian mirar e acertar, novamente, em seus elementos mais pessoais: a
cidade em que nasceu, os conflitos de periferia (o pai, imigrante armênio,
trabalhava no porto), um estilo sem rebuscamento e a fidelidade a um elenco,
começando pela extraordinária Ariane Ascaride, parceira do diretor na vida
real, e Jean Pierre Darroussin, ambos comoventes como o casal que, apesar dos
prognósti$, estará distante de uma vida tranquila.
A trama se desenvolve em
dois atos: o primeiro termina com uma festa de aniversário de casamento, na
qual Marie-Claire e Michel ganham dos filhos um alentado safári na Tanzânia,
terra do monte Kilimanjaro, tema de canção francesa de sucesso nos turbulentos
anos 1960, entoada com brio na celebração. Dias depois, um roubo violento
levará as passagens, o dinheiro, o sonho, e $á o casal a um contundente
confronto com suas convicções, que envolvem a identidade do assaltante e,
sobretudo, seus dois irmãos menores. Tem início um desconcertante segundo
round.
Pelo humanismo sem
pieguice de “Marius e Jeannette”, “A cidade está tranquila”, “Marie-Jo e seus
dois amores”, alguns títulos de sua numerosa filmografia, Guédiguian
compartilha o ideário do fim das utopias de realizadores ingleses como Ken $e
Mike Leigh. “As neves do Kilimanjaro” aproxima-se também de produções recentes,
como “O porto”, de Aki Kaurismäki (em que Darroussin interpreta o delegado
Monet), e “O garoto da bicicleta”, de Jean-Pierre e Luc Dardenne. Em comum, a
aposta na desvalorizada capacidade de se colocar no lugar do outro —
coincidentemente, três meninos pré-adolescentes. Guédiguian aproxima-se também
do iraniano “A separação” ao dar voz, sem ma$ísmos, aos vários lados de uma
questão complexa e deixar a decisão para o espectador.
Além de “ouvir”
parentes, filhos e amigos do casal, o diretor escuta também as discutíveis
razões do agressor Christophe (Grégoire Leprince-Ringuet) e a poderosa catarse
da sua mãe (Karole Rocher), personagens que contribuem para embaralhar visões
de mundo e de gerações. Mas também há lugar para momentos de suavidade e humor,
como as refrescantes lições de vida (e bebida) ministradas por inspirado barman
(Pierre Niney), prova de que, em cinema, não há pequenos papéis — apenas papéis
mal aproveitados.
Alma lavada
Algumas mensagens
sociopolíticas carregadas no vermelho podem parecer anacrônicas sob o império
da globalização, mas a convicção dos personagens e o realismo das situações de
temática universal constroem um filme de forte carga emocional e possibilidades
reflexivas.
Mesmo correndo o risco
de serem rotulados, por alguns, como dinossauros em extinção, Michel e
Marie-Claire emergem do confronto como vitoriosos éticos e morais. Idealizados?
Talvez, um pouco. Verdadeiros? Sem dúvida, e bem mais complexos do que
aparentam — as pessoas comprometidas com o outro nunca são simples. De lavar a
alma. (Susana Schild/ O Globo)