Links Patrocinados

quinta-feira, 19 de abril de 2012

As neves do Kilimanjaro


As neves do Kilimanjaro  (Les neiges du Kilimandjaro )

Diretor: Robert Guédiguian

Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan
 França (2011)


Eis aqui um filme que chega como quem não quer nada e, pouco a pouco, vai invadindo o coração... Um filme para falar à geração dos militantes políticos ( mais propriamente dos militantes sindicais e da geração de 68) engajados em um mundo em que a utopia transformadora foi sendo engolida pela globalização. Um filme belíssimo, para fazer pensar. E talvez também repensar a vida e os projetos do futuro. Não se surpreendam se lágrimas furtivas rolarem pelos rostos dos mais sensíveis.

Marie-Claire e Michel formam um casal de um outro mundo. Apesar de viverem em Marselha no século XXI, seus valores podem soar tão retrô quanto a máquina de escrever, o telefone fixo ou histórias de amor com finais felizes “para sempre”.
Idealistas e generosos, sobrevivem às margens do individualismo desenfreado e da velocidade dos tempos que correm via internet. Ele é militante sindical e, apesar da imunidade do cargo, sorteia o próprio nome de uma lista de demissões, aumentando assim a legião de desempregados da crise europeia. A mulher ajuda nas despesas como acompanhante de idosos. Sábia e solidária, parece preparada para o futuro: “Em casa, nenhum homem é herói”, conforma-se, enquanto tenta animar o entediado marido precocemente aposentado.
“Les neiges du Kilimandjaro” (no original) não é um remake da superprodução de 1952, com direção de Victor King, baseada em novela de Ernest Hemingway, estrelada por Gregory Peck e Ava Gardner. A inspiração, no caso, retrocede ao poema “Les pauvres gens”, de  Victor Hugo (1802-1885), gatilho para o diretor Robert Guédiguian mirar e acertar, novamente, em seus elementos mais pessoais: a cidade em que nasceu, os conflitos de periferia (o pai, imigrante armênio, trabalhava no porto), um estilo sem rebuscamento e a fidelidade a um elenco, começando pela extraordinária Ariane Ascaride, parceira do diretor na vida real, e Jean Pierre Darroussin, ambos comoventes como o casal que, apesar dos prognósti$, estará distante de uma vida tranquila.

A trama se desenvolve em dois atos: o primeiro termina com uma festa de aniversário de casamento, na qual Marie-Claire e Michel ganham dos filhos um alentado safári na Tanzânia, terra do monte Kilimanjaro, tema de canção francesa de sucesso nos turbulentos anos 1960, entoada com brio na celebração. Dias depois, um roubo violento levará as passagens, o dinheiro, o sonho, e $á o casal a um contundente confronto com suas convicções, que envolvem a identidade do assaltante e, sobretudo, seus dois irmãos menores. Tem início um desconcertante segundo round.
Pelo humanismo sem pieguice de “Marius e Jeannette”, “A cidade está tranquila”, “Marie-Jo e seus dois amores”, alguns títulos de sua numerosa filmografia, Guédiguian compartilha o ideário do fim das utopias de realizadores ingleses como Ken $e Mike Leigh. “As neves do Kilimanjaro” aproxima-se também de produções recentes, como “O porto”, de Aki Kaurismäki (em que Darroussin interpreta o delegado Monet), e “O garoto da bicicleta”, de Jean-Pierre e Luc Dardenne. Em comum, a aposta na desvalorizada capacidade de se colocar no lugar do outro — coincidentemente, três meninos pré-adolescentes. Guédiguian aproxima-se também do iraniano “A separação” ao dar voz, sem ma$ísmos, aos vários lados de uma questão complexa e deixar a decisão para o espectador.
Além de “ouvir” parentes, filhos e amigos do casal, o diretor escuta também as discutíveis razões do agressor Christophe (Grégoire Leprince-Ringuet) e a poderosa catarse da sua mãe (Karole Rocher), personagens que contribuem para embaralhar visões de mundo e de gerações. Mas também há lugar para momentos de suavidade e humor, como as refrescantes lições de vida (e bebida) ministradas por inspirado barman (Pierre Niney), prova de que, em cinema, não há pequenos papéis — apenas papéis mal aproveitados.
Alma lavada
Algumas mensagens sociopolíticas carregadas no vermelho podem parecer anacrônicas sob o império da globalização, mas a convicção dos personagens e o realismo das situações de temática universal constroem um filme de forte carga emocional e possibilidades reflexivas.
Mesmo correndo o risco de serem rotulados, por alguns, como dinossauros em extinção, Michel e Marie-Claire emergem do confronto como vitoriosos éticos e morais. Idealizados? Talvez, um pouco. Verdadeiros? Sem dúvida, e bem mais complexos do que aparentam — as pessoas comprometidas com o outro nunca são simples. De lavar a alma. (Susana Schild/ O Globo)

Sem comentários:

Enviar um comentário