Está em curso uma revolução silenciosa da qual poucos se deram conta. As chamadas neurotecnologias, que são as técnicas de mapeamento cerebral, de desenvolvimento de drogas ou implantação de chips que alteram o comportamento humano, sempre estiveram restritas à medicina para o tratamento e a prevenção de doenças. No entanto, elas passaram a ser usadas no quotidiano das pessoas sem que exista um questionamento ético sobre o assunto. Empresas testam o gosto de um refrigerante com base nas reacções de prazer no cérebro de um indivíduo. Estúdios cinematográficos monitoram o cérebro humano para saber quais cenas de um filme são mais excitantes e merecem fazer parte do trailer. Nos tribunais, o uso da neuroimagem como detector de mentiras é tido como uma grande promessa. Contudo, não há regras nem limites éticos para lidar com o assunto. É o que alerta o cientista Roberto Lent. Carioca, pai de quatro filhos, Lent, de 58 anos, divide seu tempo entre a literatura (escreveu livros sobre o funcionamento do cérebro que viraram peça de teatro infantil) e o laboratório de neuroplasticidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Após participar de uma conferência internacional sobre neurociências e sociedade contemporânea, no Rio, ele deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – Por que estabelecer limites para o uso das informações sobre o cérebro?
Lent – As pessoas tendem a imaginar que as descobertas feitas com base nas técnicas de mapeamento e registro cerebral são coisa de ficção científica. Eram, mas não são mais. Já está disponível a tecnologia para que uma empresa possa recrutar profissionais baseando-se em como o cérebro dos candidatos reage diante de um problema que, por exemplo, envolva um julgamento moral. Discutem-se muito os limites éticos da genética porque o assunto está na ordem do dia. No entanto, a neuroética é tão ou mais vital porque envolve a mente humana. Prever com segurança a possibilidade de alguém ter uma doença neurodegenerativa como Alzheimer aos 60 anos ou identificar precocemente a propensão de um jovem à violência é um avanço, mas representa também novos desafios éticos.
Veja – Quais as consequências disso?
Lent – Informações privadas como essas podem vazar para terceiros. Imagine uma companhia de seguros que consiga os dados sobre a propensão de uma pessoa a ter a doença de Huntington, que é incapacitante e mortal. Quem vai querer fazer uma apólice para essa pessoa? Ou ainda: que escola receberia tranquilamente um adolescente que apresentasse um marcador cerebral indicando predisposição para se tornar psicopata? Além disso, há um debate ainda mais complicado: quem deveria ter acesso a essas informações? A família? O paciente? A escola? O empregador? Vamos supor que se consiga identificar com muita chance de acerto um marcador cerebral – alguma característica morfológica ou funcional – que aponte a possibilidade real de um garoto de 15 anos cometer um ato violento, um assassinato até, aos 30. Trata-se de algo que ainda não é possível, mas os pesquisadores estão a caminho disso. O que fará o profissional em um caso desses? Diz para a família? Armazena a informação em um órgão de Estado para vigiar o garoto ou passa a medicá-lo preventivamente? Temos de nos preparar para dar essas respostas.
Veja – Mas não é sempre bom saber com antecipação os riscos que se vai correr?
Lent – Ao lidarmos com o cérebro, estamos falando daquilo que é mais humano e individual nas pessoas. Envolve um profundo debate filosófico e existencial. Se sou alérgico e meu filho herda isso, é bom saber antes para que possa tomar minhas providências. Mas, se descubro que meu filho tem propensão fortíssima a se tornar um assassino, isso traz questões éticas muito mais graves. Nós, cientistas, temos o dever de investigar a natureza e informar ao público o que está sendo descoberto, mas é a sociedade que deve discutir os limites éticos da questão.
Veja – Quais seriam esses limites?
Lent – Não há problema ético quando se desenvolve uma técnica para tratar uma doença neurológica ou psiquiátrica. O problema ético surge com a possibilidade de utilizá-la para aprimorar o que é normal, uniformizar o que é diverso, enfim, mudar a natureza humana. Tratando a questão em seu limite, eu diria que não podemos cair no abismo de ressuscitar práticas condenáveis como a eugenia, que foi uma das aberrações éticas dos nazistas. Também existe um risco enorme de fazer generalizações perigosas e erróneas.
Veja – O senhor pode dar um exemplo desse erro?
Lent – Há um grande debate sobre o uso da ressonância magnética funcional como detector de mentiras. O método tradicional de detectar mentiras mede alterações na resistência eléctrica da pele através da sudorese resultante de uma situação de stress. No caso, do ato de mentir. Mas um psicopata desprovido de emoções de natureza moral consegue enganar os detectores tradicionais. A ideia prevalente é que com o uso da neuroimagem fornecida pela ressonância magnética nem os psicopatas escapam da detecção. No caso de um assassinato, a foto da cena do crime é exibida a um suspeito, enquanto seu cérebro é monitorado. O pressuposto é o de que, ao reconhecer a cena, o cérebro emitirá um sinal específico. Esse sinal seria a prova de que o suspeito esteve no local do crime. Ora, o que se tem visto é que a detecção de mentira pela ressonância é sem dúvida um método mais complexo, mas não menos superficial e falho do que o tradicional. O sinal denunciador do criminoso pode ter sido produzido por uma lembrança inocente ou decorrente de um fato traumático mas totalmente dissociado da cena do crime. Injustiças terríveis podem ser cometidas se esse método for entronizado como infalível.
Veja – Existe um método seguro para saber se alguém está mentindo?
Lent – Não. Os métodos funcionam estatisticamente. Isso significa que eles podem indicar correctamente a função cognitiva ou emocional mais esperada em um grupo de pessoas. Mas é uma temeridade considerar que se poderá atingir uma precisão válida para cada pessoa individualmente. Esse é o ponto. Generalizar, quando se trata do cérebro humano, é um risco imenso. Cada indivíduo é diferente do outro.
Veja – Pouquíssimas pessoas têm ou tiveram o cérebro monitorado, e essas práticas não devem se popularizar tão cedo. Onde está o perigo maior?
Lent – Da mesma forma que os casais não resistem a ver imagens precoces de seus bebés pelo ultra-som, é natural que, em havendo a possibilidade, vão querer saber se seus filhos tendem a ter alguma doença no futuro. Quem não quer saber se o filho ou filha tem propensão para se envolver com drogas e ficar viciado? Já existem tecnologia e conhecimento para satisfazer essas curiosidades dos pais. Como ainda não se tem definidas as balizas éticas desses procedimentos, estamos no escuro. O filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, com o ator Jim Carrey, não é muito distante da realidade. No longa, uma empresa usa a neuroimagem para orientar uma cirurgia cerebral destinada a fazer com que o personagem esqueça a namorada. A neuroimagem localizava as regiões do cérebro activadas quando o rapaz se via diante de um objecto que o fazia lembrar-se da moça, e o técnico cauterizava essas regiões para apagar lembranças relacionadas a ela. Do ponto de vista técnico, nada impede que um centro hospitalar se proponha a liberar cirurgicamente as pessoas de más lembranças e emoções amargas. Embora não se faça isso sem efeitos colaterais graves, a verdade é que não há nenhuma norma a respeito.
Veja – A linha a separar a técnica de melhoria da vida das pessoas da técnica perigosa para a sociedade é ténue. Como distingui-la?
Lent – Não há limite porque não há regras, e não há regras porque a sociedade não discute a questão. Não se pode depender de decisões individuais. Um bom exemplo é o da pesquisa sobre interfaces entre o cérebro e máquinas. Um de seus expoentes é Miguel Nicolelis, brasileiro radicado nos Estados Unidos. A equipe dele já conseguiu fazer computadores controlar seus braços mecânicos usando os impulsos nervosos produzidos pelos neurónios de um macaco. A promessa médica embutida nisso é a de que, um dia, será possível movimentar um membro artificial ou uma cadeira de rodas apenas pela “vontade” do indivíduo. Isso seria uma excelente solução para deficientes físicos. Mas está claro que a possibilidade se abriria também para pessoas normais. Começam aí os problemas. Vamos supor que uma grande empresa, como a Petrobras, adoptasse uma política de recrutar apenas operários que concordassem em implantar um chip no cérebro capaz de, por exemplo, comandar robôs submarinos com alta precisão. Apresentam-se 300 candidatos, e quem não quiser implantar o chip está fora. É aceitável exigir dos trabalhadores o risco de se submeterem a uma intervenção cerebral dessa magnitude?
Veja – Isso também é futuro?
Lent – Não. Os jornais já noticiaram empresas recrutando voluntários para medir a activação de seu cérebro enquanto assistem a um filme publicitário. As cenas mais vibrantes, as que activam mais fortemente as áreas cerebrais ligadas à percepção do produto, são escolhidas para ser usadas nas peças publicitárias. Mas o fato é que padrões de comportamento já estão sendo alterados. A medicina está deixando de ser curativa para ser cosmética. Isso fez com que o conceito de melhorar o desempenho individual se tornasse aceito pela sociedade. Tome-se o exemplo do Viagra, do Prozac e do Botox, remédios criados com fins terapêuticos para resolver o problema da disfunção eréctil, da depressão e das alterações de tônus muscular na face. Hoje, são ferramentas cosméticas.
Veja – O que podemos esperar de novo?
Lent – Estamos muito perto de desenvolver medicamentos que possam melhorar a memória. Seria uma maravilha para ajudar a vida de pacientes com Alzheimer. Mas e se alguns estudantes decidissem utilizar tais medicamentos para melhorar seu desempenho académico enquanto outros se recusassem a fazer o mesmo? Temos um problema ético sério. Acho difícil responder a isso com segurança. É o mesmo dilema que a sociedade teria ao decidir se autorizaria jovens normais a fazer uso de uma pílula da memória para disputar uma vaga de trabalho ou na universidade. Disputar com outros que não recorreram ao auxílio químico…
Veja – Se a pílula da memória for para todos, isso não é uma boa ideia?
Lent – Poderia ser uma óptima ideia, mas insisto que é preciso que a sociedade debata essa possibilidade. Existe enorme pressão para que se comercializem as neurotecnologias porque elas tendem a dar muito lucro. Empresas querem patentear as técnicas e comercializá-las. Imagine quanto dinheiro se ganharia com a pílula da memória. Dei uma conferência recentemente, em que mostrei um catálogo com algumas técnicas distribuído a médicos nos Estados Unidos. Era um livro que listava empresas americanas que oferecem seus produtos, desde remédios até chips cerebrais. Eles já estão altamente organizados.
Veja – Padronizar aparências e comportamentos é um mal em si mesmo?
Lent – Quando se tem um diagnóstico preciso de uma criança com deficit de atenção e hiperactividade, o remédio é necessário sim. No entanto, há um limite mal definido entre as crianças com esse transtorno e as que são apenas mais rebeldes, mais inquietas, mais críticas, e não propriamente doentes. Pouco se sabe sobre o que separa os doentes dos apenas rebeldes. O rebelde chateia a mãe, chateia o pai, ele é crítico, ele se mexe demais. Então, Ritalina nele, e todo mundo fica feliz. A mensagem que se passa é exactamente essa: você precisa mudar para se adequar. O erro está aí.
Veja – Na avaliação do senhor, o que deve ser feito?
Lent – Tendo a achar que as neurotecnologias poderiam ficar restritas ao uso médico, mas com a possibilidade de ser utilizadas para problemas de outra natureza se uma junta de pessoas idóneas, não necessariamente médicos, concordasse. Algo que salvaguardasse uma decisão individual para que ela não fosse errada ou injusta. Seria uma maneira de a sociedade circunscrever o problema. A questão principal no fundo é definir se o cérebro é causa ou consequência das propriedades da mente humana. O cérebro produz as capacidades mentais fortemente influenciado pelo ambiente. Então, é ao mesmo tempo causa e consequência. Estamos tentando entender melhor não só as doenças mentais, mas as propriedades mentais dos indivíduos normais. Isso é fascinante. Decifrar o mistério do que nos torna humanos é o primeiro passo para impedir que um dia possamos ser desumanizados.
Fonte: Revista Veja, Edição 1974 - 27.09.2006
Sem comentários:
Enviar um comentário