Mulherzinhas
Depois de devorar Monteiro Lobato na infância, inaugurei minha pré-adolescência lendo o clássico “Mulherzinhas”, de Louise May Alcott, que contava a história de quatro irmãs que viviam na Inglaterra do século 19. Se fosse lançado hoje um livro com este título, não apostaria em seu êxito. Mulherzinha acabou virando sinónimo de candura, fragilidade e, por que não dizer, de uma certa patetice. Sabemos todas que chamar uma mulher de mulherzinha, no século 21, é ofensa mortal.
Somos mulherões. Algumas, pelo aspecto físico: são as voluptuosas que estampam as capas de revista e que não deixam dúvida sobre o merecimento do superlativo. Outras — a maioria — são mulherões porque não vieram ao mundo a passeio. Trabalham duro dentro e fora de casa, não raro sustentam a família sozinhas e ainda reservam um espaço para a vaidade, nem que a vaidade se resuma a um batom catado na bolsa durante o trajecto do autocarro. Já escrevi sobre estes mulherões, mas nunca é demais lembrá-las, para isso ao menos deve servir um dia internacional só para nós.
Dia da Mulher, na minha humilde opinião, tem a mesma importância do Dia da Árvore ou do Dia do Índio: serve para homenagens e reflexões, mas, na prática, não muda nada. Nem o meio ambiente é mais preservado, nem os índios são mais respeitados, nem as mulheres ganham melhores salários pelo fato de terem um dia só para si. O que muda alguma coisa nesta vida é postura, consciência e coragem. E, neste aspecto, fico feliz ao perceber que as coisas estão mudando pelo fato de que há cada vez menos mulherzinhas no mundo.
A mulherzinha é aquela que confunde delicadeza com resignação. Fala baixinho, com uma voz titubeante, como se tivesse que pedir licença para externar sua opinião — nas raras vezes em que tem uma. A mulherzinha tem o maior orgulho de ter suas contas — todas — pagas por um homem. Nunca cogitou experimentar alguma independência, mesmo que relativa. A mulherzinha não conhece assunto melhor do que novela, empregada e liquidações. E acredita que toda fofoca é inocente. Ela é um amor e ri o tempo todo, ninguém sabe direito do quê. A mulherzinha tem pavor de qualquer tipo de evolução — aliás, deve ter deixado escapar um “já foi tarde” quando soube que Betty Friedan faleceu. A mulherzinha enrubesce pelos motivos errados. E quase sempre acha charmoso fazer o papel de burra — o que diz tudo.
Tento me lembrar de quantas representantes do género conheço, e, ufa, quase não recordo de nenhuma. Talvez uma ou duas que ainda persistem em servir apenas como adorno da sociedade. São mulherzinhas muito queridinhas, muito boazinhas, muito sonsinhas, que adoram viver no encantado mundo do diminutivo.
Toda mulher já foi mulherzinha um dia, até que uma frustração aqui, uma descoberta ali, um caída de ficha, uma dor profunda, um aperto financeiro, uma longa viagem ou uma leitura impactante a fez acordar dos devaneios de cinderela e se tornar uma mulher erecta, firme, que responde por si própria. As que ainda precisam de atenção do Estado — e são muitas — precisam não por serem mulheres, e sim por serem excluídas e estigmatizadas, como vários homens também são — ou não?
Medos, ainda temos alguns. Natural. Mas entre eles já não está o de retroceder ao século 19, quando éramos muito românticas — óptimo, isto ainda deveria estar em uso — porém nada além de românticas.
(texto de Martha Medeiros – O Globo, 05/Março/2006)