Música. A história da teimosia de um grande pianista que não desistiu de ser maestro.
Um acidente travou a carreira de pianista de João Carlos Martins. Acabou por se tornar maestro e contou ao i como não desistiu do que diz ser o seu destino.
João Carlos Martins seguia num táxi em direcção à 57a Avenida, uma das transversais da 7.a, em Nova Iorque. O trânsito estava caótico, buzinas, confusão. Gente bem vestida e apressada numa corrida contra o tempo. "O que é que se passa aqui, que confusão é esta?", perguntou ao taxista. "Não sei quem é o gajo que vai tocar hoje no Carnegie, mas é por causa dele", ouviu. "Faça como quiser, mas leve-me lá rapidamente. Esse gajo que vai tocar sou eu!"
João Carlos Martins, pianista, foi considerado pela "New York Magazine" e pelo "Boston Globe" o melhor intérprete de Bach depois do lendário Glenn Gould. Aos oito anos já era um virtuoso e aos 13 apresentava-se nas melhores salas brasileiras. Com 18 estreou-se no palco do Carnegie Hall, em Nova Iorque, num concerto patrocinado pela ex-primeira-dama dos Estados Unidos Eleonor Roosevelt. Aos 23 gravou o "Cravo bem Temperado", êxito de vendas durante anos nos Estados Unidos.
Aos 26, quando estava alojado num hotel nova-iorquino para mais um espectáculo, espreitou pela janela. Lá em baixo estavam uns miúdos a jogar à bola e João Carlos Martins, fanático por futebol, foi ter com eles para "dar uns toques antes do concerto". A fatalidade atravessou-se-lhe no caminho e aquela decisão mudou-lhe a vida: a correr atrás da bola, entre os rapazes (também brasileiros), uma queda violenta roubou-lhe os movimentos da mão direita. Os dedos do pianista calaram-se naquele momento.
Com o sonho desfeito, a música é atirada para trás das costas, mas o ex-pianista estava decidido a dedicar-se a novos projectos. João Carlos Martins foi buscar o exemplo à infância. Mais precisamente ao pai, "que é português, de Braga", contou ao i. O pai teve um cancro aos 36 anos e os médicos deram-lhe poucos meses de vida: "Não o conheciam. Morreu num acidente de aviação com 102 anos, dando um exemplo de dinamismo até ao último dia da sua vida", conta.
Um ano depois do acidente de Nova Iorque, João Carlos não queria acreditar que tinha abandonado o piano. "Como era possível ter deixado a música?", questionava-se. Dia após dia praticava intensamente e descobriu que, se não usasse o dedo anelar, conseguia recuperar a velocidade dos restantes. Queria voltar ao Carnegie Hall e marcou novos concertos, mesmo sob o alerta do seu agente: "Já ninguém se lembra de ti. É difícil encher o Carnegie. Pensa melhor." Mas não havia volta a dar, porque o pianista queria mesmo subir ao palco e voltar a interpretar não só Bach, mas também Ravel, Tchaikovsky ou Ennio Morricone.
Por causa disso, aterrou em Nova Iorque e foi parar ao tal táxi da confusa Rua 57, receoso de chegar tarde ao seu próprio regresso aos palcos. O taxista americano lá conseguiu deixá-lo a tempo no Carnegie Hall e a apresentação correu "maravilhosamente. Foram precisas mais 300 cadeiras na sala, o que nunca acontece lá", conta.
João Carlos Martins continuou a fazer recitais de piano, ano após ano, espectáculo após espectáculo, até que: "Depois de sete anos de prática, fiquei com uma doença chamada lesão por esforços repetitivos (LER)." Devido ao esforço e à prática intensa do piano, os seus dedos começaram a ter movimentos involuntários e teve de deixar de tocar mais uma vez.
Mas voltou a não desistir: "Se pararmos de fazer o movimento repetitivo [tocar piano], o movimento involuntário é esquecido passados uns anos". Martins deixava de tocar, para voltar a tocar de novo.
O pianista nunca largou o seu alvo, mas por vezes parece que o destino desafia quem mais lhe faz frente. "Ao sair de uma teatro na Bulgária fui assaltado. Bateram-me com uma barra de ferro na cabeça." Caiu no chão, foi levado para o hospital e ficou em coma oito meses. Quando acordou, João Carlos tinha o lado direito paralisado. O piano calou-se novamente, e a luta recomeçou, dia após dia, um passo atrás de outro passo.
Um ano depois, volta a "fazer as tais 21 notas por segundo". João Carlos Martins volta ao Carnegie Hall. Dois anos depois, os médicos, em Miami, dão-lhe mais uma notícia brutal: "Vamos ter de cortar os nervos da sua mão direita e nunca mais vai poder tocar piano."
João Carlos Martins, pianista, começa uma carreira com a mão esquerda. O piano foge-lhe de novo quando um tumor "também rouba o controlo da mão esquerda".
Reviravolta A sua paixão pela música não permitiu que a abandonasse e, aos 64 anos, troca novamente as voltas à vida e aposta na carreira de maestro: "Superação é transformar a adversidade em plataforma", diz. Formou a Orquestra Bachiana Jovem e a Bachiana Filarmónica e depois fundiu-as. Voltou ao Carnegie Hall, agora "como regente", diz.
O maestro João Carlos Martins faz cerca de 200 concertos por ano. "Às 5h estou acordado, esteja onde estiver, para decorar as músicas", explicando que não pode virar as páginas das partituras ou usar uma batuta, por isso tem de memorizar as pautas.
"No ano passado foram 10 mil páginas. Quando você menos espera, o sonho corre atrás de si."
Em menos de um ano gravou 5 CDs e diz que quer mais: "Quero criar sempre". E por isso tem um novo projecto. "Criar mil orquestras jovens, em dez anos." As primeiras 180 vão estrear-se em Janeiro de 2012, em São Paulo. "Um Brasil musical diminui a criminalidade", acredita.
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