No início deste ano assisti o filme "O Diabo veste Prada" junto com um grupo de formação de jovens entre 19 e 23 anos. Fiquei impressionada pela positiva. História base: Andy Sachs é uma assistente de Miranda Priestly, editora de moda da conceituada revista Runway Magazine. Ela é um verdadeiro demônio por suas atitudes prepotentes, arrogantes, frias, na relação com seus funcionários e parceiros de trabalho. O ambiente do enredo é a MODA. Interessante é que a moda é apenas o apêndice escolhido pela autora de livro homônimo e mantido pelo roteirista e diretor, para chamar a atenção ao livro e filme. Mas muitos espectadores saem do cinema acreditando que o filme fala do mundo da moda e quão cruel pode ser tanto o ambiente em si como a conquista de um espaço nesse nicho profissional. Nada disso! A moda é a alegoria para se apresentar as hipócritas (mas reais) ações humanas quando a intenção é a conquista do sucesso, no caso, a qualquer preço.
O filme fala de tudo, menos de moda. É impressionante como, a cada cena, muitas das simbologias analisadas como características dos comportamentos humanos, no século XXI, ficam ampliadas e esclarecidas. Vemos fugacidade nas relações, banalidade dos valores, crueldade nas ações, perda da identidade, crenças nas representações, indiferenças quanto ao outro, falta de emoção, individualismo exacerbado etc., tudo naturalizado. Debord tinha razão, a "sociedade [é] do espetáculo" e, mais, a sociedade é da espetacularização de tudo e de todos, pelo que Andy Wahol chamou de "cinco minutos de fama". No filme, o ambiente do efêmero é a moda, como poderia ser a cultura, o escritório, a religião, as artes, a família etc. Em todos esses espaços, na vertiginosa sociedade da informação e da imagem atual, a maturação do conhecimento (Maturana) à composição de um ser íntegro e integral diante da dinâmica das situações cotidianas é uma utopia, senão apenas um fazer filosófico.
Miranda é a verdade do indivíduo atual. Miranda é o ser sem disfarces, sem teorias, sem dramas existenciais e que, para se tornar o que é, aceitou perder sua pessoalidade. Ela é humana, nunca pessoal. Mesmo as cenas de fragilidades muito femininas (perda do parceiro), não há a perda do direcionamento construído no intuito de se tornar inatingível, há a lógica de mercado e este diz que: "para poder ganhar é preciso saber perder" até o que for mais querido. O único diálogo "franco" entre ela e Andy reflete isso: "o que posso fazer por você, Miranda?" pergunta Andy. "O seu trabalho!" responde Miranda. Ao esquecerem seus lugares e investirem também nas relações pessoais no processo de conquista, as pessoas se perdem, embotam suas ações com uma série de pré-juízos que não lhes pertencem e atravancam todo o investimento com obstáculos incoerentes.
Cada um que faça o seu! Cada um que "corra na frente do seu prejuízo"! E conquiste seu desejo "de qualquer jeito" e com todas as armas! Miranda não chora por um amor perdido (seria incoerente até para a construção da personagem), ela chora por ter que enfrentar uma seara em que não entendeu as estratégias, não previu os atalhos tortuosos e em que não dominou todas as expectativas. Miranda descobre que existe um ambiente sempre imprevisível até para ela: o amor. Mas essa descoberta não a anula ou destrói. Orgulha-se de seu poder de superação e reinveste na personagem criada pela mídia: a própria Miranda; e, como Fênix, ressurge das cinzas para "dizer ao mundo" que ela é possível sim e... ainda!
Não é um filme com insights surpreendentes. Há até uma certa pobreza na construção do roteiro e nos destaques de cenas. Mas nada apaga a linguagem não-verbal de Meryl Streep em que consegue cristalizar a melhor pior chefe de todos os tempos. Durante todo o filme, não há olhares fixos entre coadjuvantes e personagem principal, a não ser quando é preciso recompor tanto o seu lugar (Miranda) quanto o lugar do outro, diante dela mesma. É a cena do sorriso de Andy diante de cintos iguais. É a cena em que Andy presencia uma discussão do casal em casa. É a cena em que Miranda anuncia seu segundo divórcio. Percebam: encarar o outro é restabelecer o lugar de cada um, pessoal e profissionalmente.
O personagem Miranda é humano puro e os espectadores saem do cinema comentando, analisando e gostando mais dela do que da pobre assistente injustiçada. Durante o filme espera-se mais por cada gesto da chefe (a aparição de Meryl Streep) do que pelo início da superação da assistente. Mais uma vez, o suposto vilão é atraente, sedutor e fascinante. É tudo o que qualquer mente, com a desculpa da praticidade, deseja ser quando busca "um lugar ao sol". Se nos aliviarmos da carga dos pré-julgamentos, Miranda torna-se a grande educadora de vida para Andy e para qualquer um que queira qualquer experiência de sucesso (valorização), pois esta não vem com resmungos, sensações de pena, reclamações ou criação de afinidades inócuas; ela acontece pelo brio, pelas escolhas, pela solidez de princípios, pelos posicionamentos, pelos enfrentamentos. E Miranda ensina tudo isso... a todos nós! Miranda é o direcionamento para a certeza de que TODOS OS DIAS serão dias de sol, caso tenhamos foco. Há um ditado para isso: "de limões, façamos limonadas!"
Basicamente, Andy tem (e isso é dito várias vezes no filme), uma oportunidade pela qual um milhão de jovens mulheres em Nova York chegariam a matar para conseguir. Mas rapidamente ela descobre que além de TER é preciso saber MANTER esse emprego e toda sua vida pessoal (amigos e namorado). Sobreviver a Miranda é impossível. Ninguém sobrevive ao Outro. Todos sobrevivemos a nós mesmos! Não há nada de incoerente no que diz ou fala (Miranda) em todo o filme. Apenas ela escolhe armas (atitudes) que incomodam ao espectador e que a defendam contra um perigo maior: o afeto. Para isso Miranda ocupa todas as horas de seus funcionários ou pelo temor ou pelas exigências. Não há tempo para fofocas de bastidores. E só se mantém nesse lugar quem faz a escolha de perder parte de sua humanidade. Essa é a proposta do Diabo! Esse é o pacto!
Miranda é a mediadora entre (aproveitando Glauber Rocha) "Deus e o Diabo na terra do Sol" (Paris é a cidade Luz). Ela é o ídolo cuja vida (lugar) os fãs querem conquistar. Andy, a pobre menina sonhadora, aceita o trato por um tempo (perde até o nome, agora é uma Emily), absorve todos os aprendizados das relações humanas que geram e incrementam o ambiente da moda, e se modifica por adaptação ao meio.
Mas, alguns dirão, Andy abandona tudo isso em busca dos seus sonhos. Ledo engano! E Miranda está certa de novo! Não há moral nessa história! Andy é igual a Miranda mesmo! No final, só o foco muda! E Miranda percebe isso quando passa a chamá-la, não mais por Emily, nem pelo apelido comum Andy, mas de Andréa, seu real nome. Não há mais espaços para as duas juntas e Miranda sabe disso. Antes de qualquer coisa, assim como fez ao dar o lugar de seu estilista a outra profissional, ela, por manipulação, abre caminho para que Andy faça sua única escolha: a própria vida. Miranda admira Andy e por isso não a quer mais tão perto.
O filme é cheio de possibilidades de leitura em diferentes campos do saber e por isso merece ser visto e revisto, principalmente para quem passa o tempo reclamando dos insucessos e não percebe que, num mundo de aparência, pelo menos, se aparentemente queremos SER, seremos o que quisermos.
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